Bestiário Peregrino*
Há algum tempo nos encontramos em uma narrativa de futuro-presente onde determinadas coisas saem do domínio do surreal - edição genética, hipervigilância, uma vida como avatar, comida de laboratório. Transformações dramáticas, sem precedentes e de futuro e resultado desconhecidos, onde uma simples alteração indica um novo destino, um eco maior e imprevisto no ato primeiro.

Com um senso de melancolia, meu trabalho como artista parte da criação de um mundo sublime onde encontro um refúgio, mesmo que pontual e momentâneo, do movediço e desenfreado mundo real. É um espaço de compensação, onde crio as figuras e as cenas das quais a realidade se distancia de modo sensível. Em suspensão do que chamamos passado, presente e futuro, converso de modo potente com o tempo maquínico e acelerado com o qual lidamos.
Dentro deste universo, investigo formas, texturas e mecanismos da natureza, criando lugares, atmosferas, seres híbridos e interespécies dentro de um universo fantástico próprio. Inspirados no real, os aspectos reconhecíveis dos híbridos atuam como ponte ao estranhamento por confundir o repertório visual do espectador. A estética é uma via de oposição à brutalidade que permeia as questões ambientais - a destruição, a força, a guerra - se propondo como ação do feminino, do delicado e do adorno. No sentido material da obra, busco uma conversa com o orgânico, com a exaltação das qualidades dos compostos de origem natural, de modo a estimular a sensibilidade fina pela mínima textura, pelo odor, pela transparência. No desenho, o traço fino valoriza e conforma pontos e pequenos traços monocromáticos que grafados geram texturas de pelos, cascos, peles, penas e espinhos.
Um universo entre a mitologia e o futurismo, o ciborgue e a quimera. Uma convergência do belo e do grotesco, do familiar e do desconhecido, que dialoga com as novas possibilidades tecnológicas e a impossibilidade de se apontar o que é natural ou construído, a mimética e a camuflagem. O corpo-colagem. O diálogo construído entre o real e o imaginário isenta este último de ingenuidade. Ele é um espaço para examinar a condição humana, o debate do corpo, das transformações, dos mecanismos naturais e artificiais, dos rumos da técnica. Intersecciono a arte e a ciência para tratar de temas filosóficos e sociológicos.
Em meio a hostilidade e a prepotência do Antropoceno faço um exercício de contentar-me com a contemplação, sem o poder de controlar e atuar sobre as demais espécies. A ação narrada em cada uma das cenas procura revelar uma relação com o outro, o ambiente, a solidão e seus desdobramentos. Uma resposta à incerteza do porvir, da extinção, da edição genética e da alteração das formas originais dos corpos, humanos ou não, mas sempre a nosso serviço.

*O nome “Bestiário Peregrino” refere-se aos catálogos medievais onde animais reais e fantásticos eram descritos através de seu aspecto, habitat e alimentação. Os chamados “bestiários”, encerravam cada verbete com uma mensagem moralizante. Já o termo “peregrino” refere-se especificamente ao bestiário que descreve as criaturas que não foram contempladas pela Arca de Noé.