De modo geral, tendemos a superar o mito do gênio criador. Sabemos que a formação do artista e de sua linguagem passa pela pesquisa e pelas suas experiências, o que pode-se julgar mais democrático, porém não necessariamente fácil: a ferramenta mais poderosa do artista é a sua própria mente, suas bandeiras e batalhas, sua personalidade, a forma como se coloca no mundo. Tais tendências nos fazem crer, erroneamente, que a materialidade* da obra está em segundo plano com relação ao seu aspecto conceitual. Na verdade, a atitude do artista perpassa a escolha dos materiais que irão construir a obra. Ela é uma forma de sermos partidários de algo: dos métodos do passado ou do triunfo das técnicas do presente; do virtual ou do analógico, da cor ou do monocromático. Acrílica? Encáustica? Linguagem de máquinas? Tudo contém um significado. A materialidade indica se não de maneira intencional o posicionamento do artista, certamente aponta sua época de feitura, as tecnologias e as preocupações de uma geração.
Dessa forma, a materialidade deve ser explorada de maneira consciente a fim de aprimorar o significado da arte, ou seja, sua poética, sua bandeira, os problemas que suscita. Já está dito de diversas formas que o meio é uma mensagem.
Quando encontram-se técnica e significado em harmonia, o material confere vigor ao trabalho e exprime sua discussão em máximo potencial. Este é um critério de sentido presente na arte. Ou seja, os significados que se atribuem a algo dependem do que está envolvido em sua criação. Isto fica claro ao pensarmos que se mudamos a matéria da qual é constituída uma obra, mudamos substancialmente o que ela busca expressar. Ou que um mesmo material pode ser usado por diferentes artistas com finalidades opostas.
É importante considerar que o material ótimo para a poética de um artista não deve estar a priori ligado ao valor intrínseco da matéria prima, se essa não for uma discussão que se queira apresentar. Para discutir efemeridade, uma tintura de cor fugidia, feita a partir de frutas, flores ou insetos, é perfeita. Para falar sobre a exploração dos recursos naturais em países subdesenvolvidos, pode-se utilizar ouro, petróleo e diamantes. Assim, o conceito da materialidade de obra é único para cada objeto.
No âmbito do material está também a cor e a sua origem natural. Podemos mencionar como exemplo um laranja ocre que o é por que sua cor advém da argila natural, composta majoritariamente pelo elemento ferro. O mesmo se passa com os brancos: o de chumbo, utilizado sobremaneira ao longo da História da Arte, é único em seu caráter de tom quente, que forma fios alongados e dá volume e textura às pinceladas. Os brancos de titânio e zinco são azulados, secos, de característica muito diversa do chumbo. A calcita é transparente e é geralmente usada para dar volume à tinta, mas também pode ser usada como veladura.
Dessa forma, ao aprofundarmos a investigação em torno dos materiais, reconhecemos que um branco não é apenas um branco e um laranja não é apenas um laranja. Eles falam do comércio, da troca entre culturas, da tecnologia de uma época e das preocupações do artista, bem como de sua realidade econômica. Tais aprofundamentos nos levam a acessar uma História da Arte que existe por trás da História da Arte trivial, o que seria uma história técnica da Arte. Observá-la por este ângulo nos permite acessar uma série de outras questões sociais e biográficas que não são acessadas por meio da visão, por exemplo, dos movimentos artísticos como artistas pertencentes a um grupo uniforme e coeso. Permite também que encontremos formas mais conscientes e seguras de aplicar tratamentos de conservação e restauro, discutir questões ambientais, degradação e origem dos materiais que compõem uma obra.
Convido o artista leitor que traga estes questionamentos para o seu fazer e não apenas enquanto atua como espectador de obras de outros autores. Quais materiais dialogam com as bandeiras que você levanta em seu trabalho? Quais texturas te interessam? Quais materiais podem te oferecer esse efeito? Qual a origem dos materiais que você utiliza na confecção das suas obras? Você está de acordo com o mercado que há por trás destes produtos?
*A materialidade é a propriedade de ser ou consistir de um material. Na arte ela pode estar ligada não apenas à matéria prima, mas também à forma, uma vez que elas podem estar conectadas. Assim, o conceito da materialidade é único para cada objeto.
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