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Foto do escritorVerônica Spnela de Sousa

Breve histórico dos suportes de escrita

Atualizado: 23 de ago. de 2022

A comunicação através da escrita como conhecemos hoje sofreu uma gama de interferências e aculturações até culminar em seu aspecto atual. As primeiras escrituras parecem datar cerca de 100 mil anos e alguns creem na possibilidade de serem ainda mais antigas (FISCHER, 2009). Daí até a descoberta do papel, o homem desenvolveu uma grande diversidade de meios de se comunicar por sinais visuais, como a pictografia, a escrita cuneiforme, as fichas de argila e as de cera, símbolos mnemônicos, entre outros (ibidem). Porém, nenhum desses meios era de tão fácil transporte e armazenamento, nem foi disseminado de maneira tão ampla e democrática quanto o papel, permitindo uma enorme emancipação da comunicação escrita. O papiro foi muito disseminado entre as civilizações do Oriente Médio, Egito e mais adiante entre gregos e romanos, mas apesar de se assemelhar ao papel*, era um material caro e por esse motivo restrito.



Exemplo de pictogramas por nativos americanos. Prancha 47 da obra Schoolcraft, de Henry Rowe. Archives of aboriginal knowledge. 1860.

Também de alto custo, o pergaminho e o velino que viriam a substituir o papiro, se referem a um mesmo tipo de material: a palavra pergaminho é usada para designar genericamente a pele de animal limpa, seca e polida para receber a tinta de escrita; já o velino é o pergaminho produzido especificamente com a pele de vitelos não nascidos ou muito jovens, que após o tratamento de raspagem, banhos de soda e secagem em bastidores, tornavam se um material além de alcalino, muito maleável, resistente, fino e claro.



Pergaminho estirado em moldura no processo de preparo da pele. Imagem: Michelle Brown, Cornell University Library Conservation.

Por volta do século II d.C. o pergaminho começa a concorrer com o papiro como material de escrita e o substitui na Europa Ocidental a partir do momento em que fica acessível em escalas maiores. Porém sua origem remonta de séculos mais cedo, provavelmente do século VI a.C., como pode ser observado em registros assírios e babilônicos. Segundo Steven Fischer (2009, p.232),


“Eumenes II (197 – 158 a.C.) de Pérgamo na Ásia Menor (hoje oeste da Turquia), querendo estabelecer uma biblioteca para competir com a de Alexandria no Egito, estimulou seus peritos a aperfeiçoarem a técnica de afinar, esticar e secar pele de ovelhas e cabras. (...) Embora fragmentos de pergaminho do século II a.C. tenham sobrevivido, ele só começou a concorrer seriamente com o papiro no século II d.C..”

Apesar da grande abrangência, este material nunca teve seu uso disseminado na Índia ou no sudeste e oriente asiático. Hindus e budistas acreditavam ser ofensiva a ideia de escrever textos sagrados sobre a pele de animais abatidos, enquanto os chineses não o faziam por conhecerem o papel desde o segundo século da Era Comum. A manufatura do papel permaneceu um monopólio chinês entre 105 d.C. e 751 d.C.**, quando sendo derrotados pelos árabes, soldados chineses peritos no fabrico do papel foram capturados pelo governador de Samarkand, atual Uzbequistão. As matérias primas usadas na ocasião eram o linho e o cânhamo, abundantes na localidade - diferente do papel original, preparado a partir de trapos de algodão e fibras cruas de loureiro, amoreira, cânhamo ou grama chinesa (HUNTER, 1947). Segundo Sylvie Baussier (p.231, 2005),


“(...) a partir de então, o conhecimento da manufatura do papel espalhou-se rapidamente por todo mundo árabe: Bagdá (793), Damasco (século IX), Cairo (c. 900) (...)”.

Na Europa, o papel surge entre os séculos X e XI, através da entrada de árabes pela região da Itália e da Espanha e em 1151 é criado o primeiro moinho de papel, em Xativa (atual Valência). “No início, o papel era considerado material inferior e desfavorecido por ser manifestação da cultura muçulmana, mas a sua fabricação foi crescendo a partir da Itália no século XIII e, especialmente com o advento da imprensa no século XV, a sua aceitação na Europa logo foi definitiva” (MOTTA, 2008, p. 07).



Mulheres separando e preparando trapos de linho e algodão para o preparo de papel. Imagem extraída da Enciclopédia de Diderot, de 1767.


Mais adiante, em fins da Idade Média, especialmente nos países islâmicos, o pergaminho rende-se ao papel (FISCHER, 2009) e entre 1300 e 1400, seu uso definha por toda parte, devido às vantagens evidentes do papel, como o fato de poder ser dobrado e facilmente transportado. É certo que o uso do pergaminho não se extinguiu completamente, mas ficou reservado às produções especiais como as religiosas.


Com o desenvolvimento da imprensa por volta de 1440 e o consequente aumento da demanda por papel, era necessário encontrar uma matéria-prima que substituísse de modo satisfatório os restos de tecido, que eram caros e escassos.

Além destes dois pontos, na ausência de um método viável de branqueamento, o papel branco só poderia ser obtido a partir de trapos desta mesma cor. Quase três séculos depois, René de Réamur (França, 1683-1757), ao observar que as vespas mastigavam a madeira e a empregavam para produzir uma pasta semelhante ao papel na confecção de seus ninhos, sugere que a madeira seja usada como base para a fabricação do papel. Em 1840, Friedrich Gottlob Keller (Alemanha, 1816-1895) desenvolve um processo de moagem da madeira através do qual seria possível reduzi-la a fibras (VIGIANO, 2009, p.26). A partir desta descoberta, passam a ser desenvolvidas técnicas de produção de papel com fibras de origem vegetal in natura, sem as fibras de trapos de tecido.


Apesar dos avanços, o uso do papel permanecia limitado, devido ao custo e a raridade. Entretanto, a industrialização e a consequente produção em grande escala favoreceram a disseminação, popularização e ampliação do uso deste material. Entre os séculos XII e XV os livros deixam de ser inalienáveis às instituições (apesar de se manterem fora do alcance do cidadão médio) e surgem novas classes de livros como a escolástica, a cosmologia e a literatura (romances e lendas). Em decorrência da expansão, o papel que até então era de extrema qualidade acabou por renunciar o padrão de sua matéria prima e, portanto, do produto final, em prol do barateamento da produção.




O papel ocidental de fibras vegetais


As qualidades desejáveis do papel são, de modo geral, boa opacidade, alvura, absorção e resistência. Estas características se tornaram necessárias ao uso cotidiano e foram aperfeiçoadas com o passar do tempo. A transição da feitura artesanal para a produção industrial fez com que esses padrões evoluíssem consideravelmente, porém algumas dessas alterações culminam em resultantes indesejáveis e que dificultam a conservação do papel (VIGIANO, 2008, p.20). Além disso, segundo Celso Foelkel (2013), “Em geral, a química do papel está mais centrada no bom desempenho da máquina de papel e no atingimento (sic) das especificações de qualidade das folhas, do que na durabilidade ou deterioração natural desse produto.”.


O empenho em fabricar um papel que atenda as demandas do consumidor e do produtor é de longa data. Em meados do século XVIII a busca por materiais alternativos ao trapo era necessária, pois a Revolução Industrial contribuiu para um maior interesse pelo papel e, consequentemente, para o aumento da demanda. Apesar do processo de Keller (1840) ser uma oportuna saída para o barateamento dos custos, o papel produzido segundo esta técnica não teve plena aceitação, visto a fragilidade e a tonalidade escura do produto final (VIGIANO, 2008). Isto ocorria pelo fato de que a manufatura de papel se dava, até o momento, pela polpação*** mecânica, que apenas trituravam a madeira, desagregando-a e reduzindo-a a fibras, sem retirar da mistura compostos não celulósicos como lignina e hemicelulose, o que culminava em um papel de fibras curtas, sem resistência e escuro.



Gravura do pátio de uma das primeiras fábricas de papel pós Revolução Industrial. Imagem extraída de Early History of Geelong Paper Mill, de Elise Gillespie (1950).


Além de escura, a tonalidade dos primeiros papéis não era uniforme. A qualidade da água usada no preparo do papel (não filtrada e frequentemente com grande concentração de barro) refletia decididamente no aspecto final do produto, resultando em papéis com tons amarronzados, amarelados e mesmo acinzentados. Na França do século XII, por exemplo, eram frequentemente adicionados corantes azuis à mistura, a fim de neutralizar a coloração amarelada em decorrência da água lamacenta (HUNTER, 1947, p.225). Com a descoberta do cloro por Karl Wilhelm Scheele, por volta de 1750, a substância passa a ser usada para o branqueamento das fibras, não prevendo que este composto teria um efeito deteriorante sobre o papel. A questão conduz o desenvolvimento de estudos em busca de meios para minimizar o dano provocado nas fibras. A nova formulação deveria promover a viabilização mercadológica, centrando esforços na promoção da alvura desejada, resistência, opacidade e baixo custo.


A partir da segunda metade do século XIX, buscando diminuir a transparência do papel e para evitar que as tintas transpassassem para o lado oposto da escrita, é desenvolvido o processo da encolagem**** com breu. Assim, a permeabilidade do papel foi diminuída (VIGIANO, 2008), permitindo uma interação mais superficial entre a tinta e o papel e favorecendo a perda de informação quando da degradação superficial. Em contrapartida, obtemos um papel de maior resistência à penetração de umidade (CASTRO, p. 25, 2009), o que previne interações entre o documento e as condições atmosféricas. Apesar das qualidades desejáveis, o processo tinha seu aspecto negativo. Além do breu, a encolagem levava também sulfato de alumínio em condições ácidas.



O eucalipto representa dois terços das florestas plantadas no Brasil. Na imagem, floresta na cidade de Eunápolis, na Bahia. Registro de Amanda Oliveira/GOVBA.


Em fins do século XIX é desenvolvido na Alemanha o processo de produção de polpa celulósica conhecido como Kraft (“forte”, em alemão). Esta técnica utiliza soda cáustica e sulfeto de sódio para tornar o cozimento da madeira mais eficiente e rápido, preservando o rendimento da polpa. A ação combinada das substâncias químicas e do calor resulta na dissolução de grande parte da lignina e torna o papel passível de branqueamento sem comprometer as fibras. No Brasil o processo Kraft passou a ser adotado por volta de 1976, pela vantagem da recuperação dos químicos excedentes no fim da produção, o que impedia que resíduos fossem descartados na natureza. Atualmente é o modo de produção de papel mais utilizado no Brasil e no mundo, tendo como matéria prima o eucalipto.


Além disso, novos compostos passam a ser acrescidos à mistura para conferir características desejáveis. Segundo CASTRO (2009), cargas minerais como caulim, talco e dióxido de titânio auxiliam na opacidade, alvura e maciez, enquanto os amidos (milho ou mandioca) são usados para melhorar a união entre as fibras. Essa união permite que o papel seja menos transparente e menos poroso, proporcionando uma superfície lisa, uniforme e padronizada. Além destes, corantes para melhorar a alvura ou tingir o papel, podem fazer parte da mistura. É fundamental considerar a ação isolada e a interação destes aditivos quando visamos à preservação de documentos feitos a partir dos processos descritos, bem como para determinar os materiais que podemos aderir a este suporte.



 

Este texto é um pequeno trecho da monografia apresentada na conclusão da graduação (Bacharelado em Artes Visuais - Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo), denominada "A Conservação de obras manuscritas: Uma investigação dos desafios e modos de se fazer". Após debater a importância de se preservar este tipo de material e os desafios do cenário brasileiro, passo a discutir a materialidade dos suportes.


***


*O papiro se diferencia do papel por ter suas fibras inteiras e organizadas em finas camadas vertical e horizontalmente. O papel é produzido a partir de fibras vegetais maceradas até que cada filamento individual seja uma unidade separadamente. Além disso, são feitos de partes diferentes do vegetal: o papiro é feito de lâminas do miolo esbranquiçado e poroso do fino talo (medula) da planta aquática Cyperus papirus, enquanto o papel é confeccionado a partir do tronco inteiro de árvores como o Eucalipto e o Pinus. (HUNTER, Dard. Papermaking: The History and Technique of an Ancient Craft. Dover Publications, Nova Iorque, 1947.)


**Pesquisas arqueológicas recentes demonstram que a fabricação de papel teve início antes do período mencionado, já que fragmentos de papel foram encontrados nas ruínas de Dunhuang, noroeste chinês, datados de aproximadamente 140 a.C. e 86 a.C.. Assim, T’sai Lun seria considerado uma figura responsável pelo aperfeiçoamento e difusão do papel e não necessariamente pela sua criação.


***O processo de polpação é aquele segundo o qual as fibras da madeira são separadas, de maneira química ou mecânica, e sofrem um “desarranjo” de sua estrutura física original, permitindo a criação da polpa celulósica. “No processo mecânico, a pasta que dará origem ao papel é obtida através da prensagem dos cavacos contra as pedras de moer, na presença de água. Esses processos basicamente trituram a madeira, desagregando e reduzindo-a a fibras, sem, no entanto, retirar compostos não celulósicos como lignina e hemiceluloses, produzindo uma pasta de baixa qualidade, com fibras curtas que formarão papéis amarelados.” VIGIANO, 2009, p.27.


**** Segundo Raymond Chang, a encolagem surge da necessidade de impedir que as tintas se espalhem pelo papel de origem vegetal (poroso e higroscópico), e como uma forma de tornar esta superfície mais lisa. Para isso, aplica-se uma cobertura de sulfato de alumínio e resina durante sua fabricação. É possível comparar a diferença entre um suporte com e sem encolagem escrevendo com uma caneta à base d’água em um papel de jornal (sem encolagem) e em um papel off-set (com encolagem). In: CHANG, R.; GOLDSBY, K. Química. 11ª Edição, Editora McGrawHill, 2012.

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